Capítulo 8 – Cícero
- T.S.Duque
- 15 de set. de 2015
- 8 min de leitura

À primeira vista parecia um simples salão. Mas apenas o simples fato de manter os olhos fixos no chão já impressionava de tão brilhante e límpido que era e imaginar que toda aquela estrutura estava debaixo da terra, debaixo de um museu antigo, depois de um corredor sombrio, deixara Cícero completamente boquiaberto.
Depois que o funcionário abriu a porta e convidou Cícero a entrar ele pode compartilhar aquele esplendor em sua totalidade. Passou um pé de cada vez e bem lentamente por entre a porta, ainda vislumbrando o local. Um enorme salão que se estendia por pelo menos trinta metros de largura e um fim que não conseguia enxergar dali.
O chão completamente dourado mostrava o reflexo de luminárias gigantescas penduradas no teto a uma altura de pelo menos vinte metros. Prateleiras de uma madeira marrom envernizada faziam fileiras extensas a perder de vista, deixando corredores perfeitamente aninhados a serem percorridos por curiosos de plantão.
Nas prateleiras havia diversos objetos. Livros, quadros, chaves, potes de vidro redondos com seja lá o que que houvesse lá dentro, revistas, jornais, uma variedade de coisas que deixariam qualquer estudioso fascinado, o que não era o caso de Cícero, mais do que esses objetos, o que impressionava mesmo aquele homem era o tamanho e a beleza do lugar.
No final do primeiro corredor a frente era possível ver uma pequena escrivaninha e um senhor idoso sentado lendo alguma coisa.
- Aquele é Arsênio – disse o funcionário -, você tem muito o que conversar com ele. Vá até lá.
Cícero começou a caminhar lentamente em direção ao velho e ouviu a porta se fechando atrás de si, olhou para trás e o funcionário havia partido.
Levou pelo menos dez minutos para chegar até o velho que continuava lendo seu livro sem pausa, o livro mais grosso que Cícero já vira até então. O velho estava sentado, mas a julgar pelo que via era bem baixinho e poderia ter noventa ou mesmo cem anos de idade. Na cabeça ainda despontava um fio branco aqui e ali de modo a cobrir-lhe menos de cinco por cento de sua cabeça enrugada. Vestia uma camisa simples de linho branco e usava uns óculos de lentes bem grossas, redondos e de armação simples. Ao mudar a página do livro Cícero percebeu a mão do velho tremendo e imaginou a dificuldade que era para aquele senhor ficar ali, naquela idade, absorvendo tanto conhecimento.
- Sente-se – falou o velho gentilmente, mas sem tirar os olhos do livro.
Cícero obedeceu. A frente da escrivaninha havia uma cadeira simples de madeira e em cima dela diversos livros de todas as épocas e línguas que Cícero poderia imaginar e ficou pensando em quão sábio era aquele sujeito.
- Há muitas coisas que você precisa saber – continuou ele -, você gosta de ouvir história meu jovem?
- É...acho que sim – disse nervoso -, que tipo de história?
- A história desse Museu é cheia de mistérios – disse ele, sem responder à pergunta de Cícero -, e bem longa. – Arsênio fez uma pausa e virou a página novamente, como se fosse ler a história para Cícero. - O Museu das Portas & Chaves foi inaugurado oficialmente em janeiro de 1903, mas sua história data de muito tempo antes disso, mais precisamente em 1808, com a chegada da família real de Portugal no Brasil.
“Naquela época a Europa estava em guerra e Napoleão Bonaparte decretou o bloqueio continental, proibindo qualquer país aliado a França de comercializar com a Inglaterra. Portugal era um desses países e a enorme aliança comercial que possuíam com a Inglaterra impedia esse acordo de ser cumprido e Portugal continuou.
Não demorou muito para Bonaparte descobrir a trama e marchou em direção a Portugal para toma-la de Dom João, então regente de Portugal. Dom João estava no poder por que sua mãe havia enlouquecido, um fato comum na época, e tanto ele, quanto seu governo temiam o exército Francês, por isso resolveram fugir para o Brasil, levando tudo o que era possível e sendo escoltados pela Inglaterra.
A decisão não foi bem aceita pela população de Portugal na época e os burburinhos se espalharam por todo o continente, até chegar em Antera, uma senhora que morava no interior de Lisboa em meio a brejos, montanhas e floresta.
Os habitantes que a conheciam temiam Antera, ninguém tinha coragem de ir até a casa dela, ninguém sabia o motivo, ninguém saberia explicar por que, mas corria pelo povoado os boatos de que Antera não era uma pessoa comum, mas uma Bruxa muito poderosa.
Antera morava com uma filha chamada Aquira, que na época tinha apenas dez anos de idade e ninguém tinha relatos de seu pai, o que aumentava ainda mais os rumores. Antera matara o marido? Aquira nascera através de algum pacto ou magia negra? Ninguém sabia responder e, quando não existem respostas, as suposições chegam a patamares estratosféricos.
Antera não gostou muito da atitude de Dom João em abandonar seu povo para morrer nas mãos de Napoleão sem mesmo lutar, sem um exército para defende-los, sem ninguém para proteger a terra que tanto amava e gostou menos ainda quando soube que todo o exército do país estava indo com ele para o Brasil. Aquilo a enfureceu e não deixaria passar sem tomar uma atitude ainda mais com uma filha tão pequena sendo deixada para a morte.
Antera aceitaria morrer em seu país, mas de maneira alguma poderia deixar sua filha Aquira para morrer ali. Aquira deveria continuar viva. Aquira deveria levar a semente da vingança. E foi isso que Aquira fez.
Antera preparou uma semente maligna e instruiu Aquira a come-la quando chegasse no Brasil e, quando fizesse isso, sua vingança começaria a acontecer e todos os humanos seriam destruídos pelo seu feitiço. Aquira conseguiu colocar sua filha no navio de Dom João e ela desembarcou aqui sem problemas e permaneceu perto de Dom João durante bastante tempo, seguindo cada paço do rei fujão. Desembarcou na Bahia, desceu para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, local onde se estabeleceu e passou a viver apenas aguardando a profecia se cumprir.
- Seu herdeiro se levantará dos mortos – disse sua mãe antes de partir -, e destruirá esse povo corrupto e mal.
Aquira ouviu aquelas palavras em silêncio, apenas obedecendo sua mãe e querendo dar vida ao desejo de sua amada, mas aquela sentença a acompanhou por toda a vida de modo a chegar a um ponto em que não fazia mais sentido para si cumpri-la, mas não poderia voltar atrás. A profecia iria se cumprir, ela querendo ou não.
Tentou resistir à tentação de ter filhos. Conheceu um bom rapaz na cidade já com seus vinte e poucos anos e se casou. A pressão na época para ter filhos era muito grande e os homens não aceitavam isso muito bem, portanto Aquira não conseguiu resistir por muito tempo, por isso confidenciou toda sua história ao homem da sua vida. Um homem que amava acima de todas as coisas. Um homem que a amava acima de todas as coisas.
Quando contou a seu esposo sobre a profecia os dois choraram. Em um primeiro momento seu marido ficou com muita raiva por ela nunca ter falado nada antes, mas depois de um tempo entendeu a dor de sua amada e seu desejo de ter um filho e disse para ela:
- Meu amor – disse ele em meio a lágrimas -, não vamos viver dessa maneira. Eu prometo que vou achar um jeito de reverter isso, nem que dure minha vida toda, mas nós vamos ter um filho, ou dois, ou três, quantos você quiser.
- Você não faz ideia de quanto isso é perigoso meu amor – disse ela.
- Eu sei, eu sei, mas não podemos desistir assim, sem ao menos lutar.
- Sim, podemos meu amor. Não podemos, nós dois, condenarmos a humanidade a esse sofrimento. Me mate. Me mate e resolvemos tudo isso.
- NÃO! – Ele gritou – Não diga uma coisa dessas, meu amor, por favor, não vamos desistir. Vou achar uma solução, eu te prometo.
Uma promessa difícil de cumprir. Mas seu esposo tentaria de todas as maneiras. Até o findar de seus dias.
Àquela altura o marido de Aquira já trabalhava em um museu recém-inaugurado pelo governo e sabia que havia sido todo construído com materiais provenientes de Portugal, que acompanharam Dom João em sua expedição e concluiu que não poderia haver em nenhum outro lugar uma resposta para aquela profecia, se não ali, naqueles livros, naquelas artes, naqueles papéis.
Poucos meses depois Aquira ficou grávida e deu à luz uma menina que chamaram de Maria, foi o único filho do casal, e a primeira alegria também. Maria cresceu, se casou, e também constituiu família dando à luz a gêmeos em seu primeiro e único parto. Um parto de risco. Um parto difícil. Um parto que Maria não resistiu e acabou morrendo, mas que trouxe a existência as duas últimas alegrias de Antera e de seu marido. Ali nascia Irineu e Marcos."
- Irineu e...Marcos? – Cícero perguntou, interrompendo o velho pela primeira vez.
- Isso mesmo – Arsênio continuou. – Aquira era avó dos dois e, depois que Maria morreu, passou a cuidar dos netos, pois o marido de Maria não suportou a perda e passava mais tempo em bares bebendo do que com os próprios filhos. Aquira e seu marido passaram a cuidar dos dois como se fossem filhos deles, mas o temor da profecia passara a incomodá-los ainda mais com a morte de Maria. Mal sabiam eles que a profecia seria cumprida apenas na segunda geração.
“Seu marido continuou trabalhando no museu e logo se tornou o diretor do lugar. Construiu esse espaço fora dos olhares de todos os outros funcionários e continuou estudando, buscando uma forma de reverter a profecia. Até o dia que Aquira adoeceu. Sua idade já elevada começou a trazer todo tipo de doença e sua força de vida foi minguando aos poucos e então fez algo que seu marido não esperava. No dia de sua morte contou para Irineu e para Marcos a profecia. Mas junto com ela revelou algo que nem mesmo seu marido sabia. Talvez nem ela soubesse até aquele momento. Mas sua partida para o outro lado parecia ter revelado algo que jamais imaginaria.
...haverá alguém que lutará contra essa raça, dizia ela para Marcos, você precisa encontra-lo...
Irineu e seu marido estavam no local quando ela disse aquilo e então seu marido explicou tudo a eles. A partir dali eles começaram a se envolver com os estudos e fizeram as três chaves, uma para cada um deles, que dava acesso exclusivo a esse espaço e a ordem era: quando encontrassem o escolhido deveriam entregar a chave para ele, para que seguisse o rastro até aqui. E foi exatamente o que você fez.
Depois que Irineu morreu Marcos passou a dividir seu tempo entre os estudos e o cemitério. Queria ficar perto do irmão. Ter certeza de que não seria ele quem voltaria. E talvez ficando perto conseguisse impedi-lo quando acontecesse. Mas Marcos não conseguiu – uma lágrima escorreu de seus olhos -, e agora tudo o que temíamos está acontecendo. Exatamente como foi previsto. Irineu retornou dos mortos. Marcos está morto. O escolhido está exatamente no lugar onde deveria estar. E eu ainda não consegui encontrar uma resposta."
- Espera um pouquinho aí – Cícero falou -, você era o marido de Aquira? Você fez a promessa a ela? Você...você.
- Sim – Arsênio interrompeu -, então você já sabe que temos muito trabalho a fazer. Precisamos parar meu neto ou seja lá quem for ele, antes que seja tarde.
Cícero não esperava por aquilo e agora estava mais espantando do que quando entrou naquele lugar. Não sabia se gostava de histórias. Nunca havia parado para pensar no assunto. Mas agora sabia exatamente a resposta. Não havia maneira de gostar de uma história como aquela.
- Odeio histórias – respondeu e caiu desmaiado.
Comentários